Noé, Um Corvo, Uma Pomba, Yonah, Jonas? | Estudo Bíblico

“Profeta!” Eu disse, “Coisa do mal!” – “O profeta parou e tentou entender se eu falava do maligno ou se falava de um corvo.”

– Retirado do poema “O Corvo” de Edgar Allan Poe, 29 de Janeiro de 1845.

Em meio à destruição do dilúvio, Noé flutua em sua arca. As águas pouco a pouco vão se acalmando, e um estranho silêncio substitui o mortal ruído da tempestade. Agora, o Gênesis declara que Noé e toda a criação são lembrados por Deus.

“E lembrou-se Deus[Elohym] de Noé, e de todos os seres viventes, e de todo o gado que estavam com ele na arca; e Deus fez passar um vento sobre a terra, e aquietaram-se as águas.” Gênesis 8:1

O nome usado para Deus nesta passagem é אֱלֹהִים Elohym no texto em hebraico. Aqui, a conotação desse nome é “Deus de Justiça”.

Podemos até pensar que um Deus furioso puniu a humanidade, trazendo quase que a extinção da espécie humana, e então, um Deus gentil e amoroso, muda seu pensamento e lembra-se de Noé e das almas que com ele estavam na arca.

Noé solta um corvo

Entretanto, o Gênesis está nos informando que agora que o julgamento daquela geração má terminou, Elohym, este mesmo aspecto de julgamento, volta a sua atenção para Noé. E após quarenta dias, Noé abre uma janela e solta um corvo.

“E aconteceu que ao cabo de quarenta dias, abriu Noé a janela da arca que tinha feito. E soltou um corvo, que saiu, indo e voltando, até que as águas se secaram de sobre a terra.” Gênesis 8:6-7

O corvo tem uma reputação negativa, que é associada às forças demoníacas, tanto na literatura rabínica, quanto na literatura ocidental, o que pode ser visto nas palavras memoráveis de Edgar Allan Poe (1809 – 1849), autor, poeta, editor e crítico literário americano:

““Profeta!” Eu disse, “Coisa do mal!” O profeta parou e tentou entender se eu falava do maligno ou se falava de um corvo.”

A reputação negativa em relação ao corvo parece vir já desde a época do Gênesis, bem no início da civilização humana. Mas porque teria esse pássaro tamanha má fama?

O livro Be’er Mayim Hayim aponta que a palavra עורב ´orev “corvo” em hebraico é escrita com as letras ע ayin ר resh ב bet , as mesmas letras que, se dispostas de forma reversa, se escreve ברע b’ra “Mal”.

noé solta um corvo

Noé Solta Um Corvo – o Símbolo do Mal.

Comparado o corvo com a pomba – símbolo do amor, da lealdade e da paz – o contraste é muito grande. Enquanto que o corvo é de cor escura, a pomba é branca. Será que a bíblia se envolveria com a cor da pigmentação dos pássaros?

Bom, mas vamos continuar esse estudo, e ver o que acontece com a pomba, há significâncias importantes nas camadas dessa história. Vamos entendê-las mais a frente.

Há toda uma psicologia envolvida com o fato de Noé ter soltado primeiro o corvo e depois a pomba. Com uma leitura rápida do texto, fatalmente não conseguiríamos captar o seu significado.

E por mais que a análise desta passagem pareça supérflua, é possível sim entender o motivo da ordem de soltura desses pássaros, e ainda aprender lições valiosas.

Vamos juntos, em mais uma viagem pelas escrituras. Com paciência e atenção, poderemos ouvir Deus nos ensinar muitas coisas em sua palavra.

Noé solta uma pomba

“Depois soltou uma pomba, para ver se as águas tinham minguado de sobre a face da terra. A pomba, porém, não achou repouso para a planta do seu pé, e voltou a ele para a arca;
porque as águas estavam sobre a face de toda a terra; e ele estendeu a sua mão, e tomou-a, e recolheu-a consigo na arca.

E esperou ainda outros sete dias, e tornou a enviar a pomba fora da arca. E a pomba voltou a ele à tarde; e eis, arrancada, uma folha de oliveira no seu bico;
e conheceu Noé que as águas tinham minguado de sobre a terra. Então esperou ainda outros sete dias, e enviou fora a pomba; mas não tornou mais a ele.” Gênesis 8:8-12

Uma leitura cuidadosa do texto traz diversos problemas à tona.

O objetivo de se soltar a pomba é claramente relatado “para ver se as águas tinham minguado de sobre a face da terra, enquanto que nada se fala sobre a motivação que levou à soltura do corvo:

“E soltou um corvo, que saiu, indo e voltando, até que as águas se secaram de sobre a terra” Gênesis 8:7

No caso do corvo, é dito que Noé o soltou, e que ele permaneceu voando, indo e voltando, mas o texto não declara claramente o motivo pelo qual foi solto.

O uso desses dois pássaros sugere uma missão comum aos dois, mas a falta de explicação sobre a missão do corvo é surpreendente.

Porque seria o corvo especificamente o primeiro escolhido? O texto é silencioso, não dá explicações para esse fato.

Mas quando comparamos os dois versos que descrevem o envio do corvo e da pomba respectivamente, nós percebemos outra diferença:

Quando Noé envia a pomba, a palavra utilizada em hebraico é mei’ito מֵאִתּוֹ , e literalmente traduzindo o verso em questão, lemos que Noé enviou a pomba “dele mesmo”, (uma expressão idiomática difícil de traduzir).

O leitor, em hebraico, tem a impressão de que Noé tinha uma proximidade maior com esse pássaro, como se a pomba fosse seu animal de estimação. Já no caso do envio do corvo a palavra mei’ito está totalmente ausente.

A missão da pomba foi completada com sucesso quando ela retornou com uma folha de oliveira em seu bico, criando a eterna imagem símbolo da paz. Mas e sobre o corvo? Porque ele foi solto, e como ele se sucedeu?

Hezekiah ben Manoah, também conhecido como Hizkuni, sugere um desprazeroso mandato para o corvo:

““E soltou um corvo”: Porque é de sua natureza comer carcaças, e se as águas tivessem diminuído, ele poderia encontrar corpos.” Hizkuni, Bereishit 8:7

Em contraste com a folha de oliveira no bico da pomba, símbolo da paz, nós temos a imagem vívida do predador carnívoro, descendo até os corpos, e quem sabe, mutilando e trazendo um pedaço a Noé.

Essa imagem persiste, mesmo o tendo o texto informado que o corvo não conseguiu nem ao menos sair das imediações da arca, pois ficou indo e vindo, dando voltas em torno dela.

A explicação de Hizkuni pode ser a correta leitura do texto, e da motivação de Noé para saltar o corvo, nós nos surpreendemos do porque isto não é declarado explicitamente nesta passagem.

O Rabino Naftali Tzvi Yehudah Berlin (o Netziv) no seu comentário sobre o Gênesis, Ha’amek Davar, também questiona o motivo pelo qual o corvo e a pomba são enviados, já que existiam outros pássaros que teriam maior capacidade de voo.

Ohr HaHayim, (rabino Haim ben Attar, 1696-1743), também pergunta do porquê do envio do corvo, mas rejeita a sugestão de que seria para verificar o nível das águas do dilúvio:

“O Gênesis certamente declararia isto, como fez em relação à missão da pomba” – dizia ele.

Seguindo a tradição Talmúdica, HaHayim revela o motivo pelo qual o corvo foi solto: Noé não o queria por perto.

Enquanto que a pomba foi enviada em uma missão de reconhecimento, para checar se as águas já haviam secado, o corvo é simplesmente lançado fora.

Teria sido muito mais prudente se Noé tivesse primeiro enviado um pássaro das espécies de que foram tomados sete pares, do que enviar uma espécie da qual foram preservadas apenas dois.

Talvez (apenas talvez), Noé enxergasse o mundo por meio da utilidade das coisas: Se algo não tem utilidade, não tem valor.

Se o corvo não serve como alimento, nem pode ser usado para se fazer uma oferta, um sacrifício, então o mundo não precisa dele, tanto assim.

Aparentemente, Noé não estava preocupado com a potencial extinção daquela ave de rapina.

O Gênesis traz esse ensinamento de que durante o dilúvio um dos atributos de Deus, Elohym, o seu julgamento estava em plena atividade. E o mundo estava passando por um período de trevas e juízo.

E como seu primeiro ato, após as águas do dilúvio recuarem, Noé coloca para fora um símbolo de trevas e crueldade.

Somente depois é que ele explora a possibilidade de bondade, lealdade e paz, enviando a pomba, que representava a misericórdia e a bondade divina

O caráter da pomba é refletido até mesmo no seu nome em hebraico, pois a palavra יונה yonah é composta de três das quatro letras do nome divino que denota a sua onipresença, a שכינה Shekhinah.

Noé rejeita o corvo, o lança fora e se identifica com a pomba que ele envia mei’ito – vindo dele mesmo. Entretanto, há alguém que não concorda com essa visão e atitude em relação ao corvo, Deus, o criador desta criatura estigmatizada, “maligna”, de cor escura.

A tradição oral – o sentido simbólico da história – tem uma abordagem interessante sobre essa passagem:

“O rabino Berekhyah disse em nome do rabino Abba b. Kahana: O Santo dos santos, abençoado seja Ele, disse a Noé: “Pegue o corvo de volta, porque o mundo precisará dele no futuro”. “- Quando?” – Perguntou Noé. “- Quando as águas se secarem de sobre a terra.
Um homem justo se levantará secará a terra, e será necessário que ele seja alimentado por corvos”, como está escrito:” (Bereishit Rabbah 33:5)
“E os corvos lhe traziam pão e carne pela manhã; como também pão e carne à noite; e bebia do ribeiro.” 1 Reis 17:6

A tradição oral se refere a um episódio que pode ser considerado o inverso do dilúvio – o tempo de seca – onde o corvo foi muito útil ao alimentar o profeta Elias.

“Então Elias, o tisbita, dos moradores de Gileade, disse a Acabe: Vive o SENHOR Deus de Israel, perante cuja face estou, que nestes anos nem orvalho nem chuva haverá, senão segundo a minha palavra. Depois veio a ele a palavra do Senhor, dizendo: Retira-te daqui, e vai para o oriente, e esconde-te junto ao ribeiro de Querite, que está diante do Jordão.
E há de ser que beberás do ribeiro; e eu tenho ordenado aos corvos que ali te sustentem.” 1 Reis 17:1-4

Nessa história simbólica da tradição oral, nós aprendemos que Deus tem planos até mesmo para um corvo. Tudo tem um propósito. O nome corvo é ‘orev em hebraico, e não significa “preto”, ela vem de uma raiz que significa “mistura”.

Mesmo que Noé o visse como uma ave de cor preta, especialmente quando comparado com a dócil pomba, cujo nome possui um pouco do divino.

Ainda assim o corvo tem uma constituição muito mais complexa do que se imagina – ele reflete a mistura do bem e do mal, a representação da realidade pós-queda do homem no Éden.

Noé escolhe lançar fora o corvo. Ele não aceita essa referência visual do bem e do mal. Ele vê a sua própria sobrevivência como uma testemunha da erradicação do mal e do triunfo do bem. Deus vê de forma diferente.

A natureza do homem foi mudada após o pecado, e a partir de então, o ser humano tem que aprender a conviver com essas duas naturezas.

“Porque a carne cobiça contra o Espírito, e o Espírito contra a carne; e estes opõem-se um ao outro, para que não façais o que quereis.” Gálatas 5:17

Yonah, Pomba, Jonas

Há um outro livro que conflita com esta mesma fonte de tensão: Uma sociedade imperfeita deve ser redimida ou erradicada?

O profeta que também escolheu ver o mundo em “preto e branco” é não outro, senão Yonah “Jonas”, o mesmo nome para a palavra yonah “pomba” em hebraico.

“E veio a palavra do SENHOR [ יְהוָה Yehovah ] a Jonas [Yonah], filho de Amitai, dizendo: Levanta-te, vai à grande cidade de Nínive, e clama contra ela, porque a sua malícia subiu até à minha presença. Porém, Jonas se levantou para fugir da presença do Senhor para Társis. E descendo a Jope, achou um navio que ia para Társis;
pagou, pois, a sua passagem, e desceu para dentro dele, para ir com eles para Társis, para longe da presença do Senhor.” Jonas 1:1-3

Repare que o nome usado para Deus aqui é יְהוָה “Yehovah”, nome que indica compaixão. Yonah, Jonas, foge da presença da compaixão de Deus. Jonas preferia mais a justiça (Elohym) do que a misericórdia (Yehovah).

“E Deus viu as obras deles, como se converteram do seu mau caminho; e Deus se arrependeu do mal que tinha anunciado lhes faria, e não o fez.” Jonas 3:10 “Mas isso desagradou extremamente a Jonas, e ele ficou irado. E orou ao Senhor, e disse: Ah! Senhor! Não foi esta minha palavra, estando ainda na minha terra?
Por isso é que me preveni, fugindo para Társis, pois sabia que és Deus compassivo e misericordioso, longânimo e grande em benignidade, e que te arrependes do mal. Peço-te, pois, ó Senhor, tira-me a vida, porque melhor me é morrer do que viver.” Jonas 4:1-3

Para compreendermos completamente a relação entre a história de Noé, e sua visão dualista do mundo, em preto e branco, o corvo e a pomba, “mocinhos e bandidos”.

Temos que ver mais de perto os protagonistas do livro de Jonas, os habitantes da cidade de Nínive. Qual era a sua linhagem?

“E os filhos de Cão são: Cuxe, Mizraim, Pute e Canaã.” Gênesis 10:6 “E Cuxe gerou a Ninrode; este começou a ser poderoso na terra. E este foi poderoso caçador diante da face do Senhor; por isso se diz: Como Ninrode, poderoso caçador diante do Senhor. E o princípio do seu reino foi Babel, Ereque, Acade e Calné, na terra de Sinar. Desta mesma terra saiu à Assíria e edificou a Nínive, Reobote-Ir, Calá, E Resen, entre Nínive e Calá (esta é a grande cidade).” Gênesis 10:8-12

A cidade de Nínive é construída e habitada pelos descendentes de Cão (o filho amaldiçoado por Noé), seu filho Cuxe e seu neto Ninrode (rei de Babel) – uma trindade no mínimo ímpia e pecadora. Não cessavam de praticar o mal.

Uma cidade como esta deveria ser destruída! Qual justificativa se daria por sua salvação? – Esta era a perspectiva, a visão de Jonas!

O profeta rebelde tenta escapar do chamado de Deus para o julgamento. Ele entra em um navio e vai para alto mar, assim como Noé tinha feito no passado.

Agora, Nínive, que é tematicamente ligada ao corvo, tem como seu oponente Yonah, Jonas – a continuação temática da pomba e Noé.

Jonas, como Noé, vê o mundo em preto e branco, “mocinhos e bandidos”, enquanto que a cidade de Nínive representa o corvo – ´orev– a combinação do bem e do mal – a natureza humana após o pecado.

Mas quando Jonas olha para Nínive – seu passado e seu futuro – ele vê apenas o mal. Deus, porém, vê uma realidade muito mais complexa.

Sim o homem tem em si uma inclinação ao pecado, mas Deus também sabe que o ser humano pode também ser resgatado por meio da misericórdia e do arrependimento.

Essa era a mensagem que Ele queria que Jonas levasse àquela cidade.

Por isso, nada seria mais adequado do que o símbolo da aliança de Deus com Noé, e através dele, com toda a humanidade – o multicolorido arco-íris– a representação da multiforme graça de Deus.

O mundo não é mais preto e branco. A existência do mundo após o dilúvio é o testamento de um Deus cheio de misericórdia, e o símbolo da sua aliança é umespetacular mosaico de cores.

Mesmo quando o mundo parece escuro e mal, nós devemos aprender de Deus, e não de Noé ou de Jonas: Devemos olhar com mais cuidado e aprender a distinguir entre os elementos na “mistura”.

Deus pode ser encontrado mesmo entre aqueles que consideramos como maus. As coisas que não parecem totalmente boas, não são necessariamente más.

“Porque o Filho do homem veio buscar e salvar o que se havia perdido.” Lucas 19:10 “E Jesus, tendo ouvido isto, disse-lhes: Os sãos não necessitam de médico, mas, sim, os que estão doentes; eu não vim chamar os justos, mas, sim, os pecadores ao arrependimento.” Marcos 2:17

Sobre o autor |Website

Cursou hebraico bíblico, geografia bíblica, Novo Testamento, e estudos do Apocalipse; é especialista em estudos da Bíblia, certificado pelo Israel Institute of Biblical Studies, autor do livro Gênesis, o livro dos patriarcas.

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5 Comentários

  1. Pedro Henrique disse:

    Que maravilhoso estudo! Deus te abençoe! Agradecimento a Deus pela sua vida e a você por postar um conteúdo tão rico e esclarecedor.

  2. Sergio disse:

    Gostei muito, esclareceu muito bem minhas dúvidas, muito obrigado.

  3. Silvana disse:

    Que extraordinário estudo, recebi uma visão gloriosa e aprendi a misericórdia do nosso Deus.

  4. Dan disse:

    Excelente estudo homem de Deus.
    Bela explicação, Deus continue abençoando sua vida!

  5. William disse:

    Wow! Obrigado pela excelente explicação!